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verde ininteligível

por Gabriel Cruz Lima
imagem de georgia ayrosa para texto de gabriel cruz lima. folhetim na ordem do dia, capítulo 4

Gabriel Cruz Lima é jornalista pela Faculdade Cásper Líbero e graduando em Letras pela Universidade de São Paulo. É autor de “O Último Romântico” (BAR Editora, 2020). Assim como o São Paulo Futebol Clube, não tem nenhuma premiação expressiva na última década. Entretanto, a torcida permanece.


“Como assim por quê?”

A avó torceria o pescoço, jogando a guimba do cigarro na lata de tomate e repetiria:

“Como assim por quê?”

Adriano, com essa resposta, ficaria de ombros baixos como quem tivesse perdido no videogame há pouco. Ao perceber, a avó diria:

“Eu pinto quadros porque eu acho bonito, ué”, passando a mão na cabeleira do neto como quem desfaz fio a fio o mau humor dele e, ato contínuo, voltaria a jogar tinta na tela, pincelando com movimentos sinceros um decalque ainda, crescente de uma coisa verde amarelada.

Do fundo do ateliê, Adriano evita todo esse trauma e decide, em silêncio, observar a avó enquanto pinta. Com a fricção da cadeira no chão, Aurora olha de soslaio o neto e meneia a cabeça. Ele coloca a cadeira da escrivaninha distante o quanto pudesse do quadro e fica ali com a mão no queixo, emulando uma pose reflexiva para entender qualquer fosse a mensagem da pintura.

Didi não esperaria algo mais plástico da avó, mas desejaria qualquer coisa mais grandiloquente e ousada. Algo como pintar para não morrer, pintar a permanência dessas cores tão nossas, ou pintar como uma negação completa do serviço de artista. Pinto porque acho bonito, ué, seria a resposta. Ué, seguido de um riso aberto e desdenhoso, como se o som bastasse, coisa toda derivada disso: só porque acha bonito. 

Adriano estrela o pescoço e passa os olhos pelas paredes ao redor. Bois, vacas, cavalos, uma casinha, um riacho, um caminho e a estante de livros logo atrás das suas costas. Onde estará Guernica?

Entre uma porção de revistas amenas, também as de pintura em tela. Na estante, justaposta à cara de alguma Galisteu ou Benício, capas de Arte em Casa, duas vacas malhadas, outro pasto, manual de como fazer retratos e uma coleção intocada: Velázquez, Goya, Da Vinci, Van Gogh e Picasso. 

Adriano abre um dos almanaques empoeirados da Grande Arte, de modo que a contracapa do livro tampa sua avó. Ele fecha o olho esquerdo e estica o braço como quem buscasse também comparar as imagens. Nessa pose, a mão pegada ao livro coloca a imagem esverdeada ao lado da Guerra Civil espanhola. Sem a profundidade do olho esquerdo, o touro aos berros cai para aquela mão senil, pintando qualquer troço. Enquanto ele compara os recursos de Picasso com a flor ascendente, ela, por trás daquele tomo, mistura o amarelo ao laranjal, ao roxo hematoma e a um verde ininteligível.

Mete o livro novamente no curral. De volta à pose do Pensador, Adriano torce os olhos e franze a testa. Um vago som de estalo escapa da cabeça à boca, como quem reclama a si mesmo sobre aquele aniversário. Ele mete a mão no peito de outro Didi, tão mais magro e sem barba, com a embalagem enorme quadriculada, a velha roupa colorida, e bule o presente, barrando a vista apoteótica do que se tornaram os avós.

Adriano se apieda daquele projeto imaginado por Didi. Ela lá, toda brincos de pérola, enorme na primeira página da Ilustrada, potente, senhora e jovem, contando da alegria das influências pós-impressionistas. Ele mais risonho ao ler o jornal de domingo, duplamente contente porque ela tinha escondido sua influência anterior, fazendo daquela coleção dos livros comprados à prestação no sebo, apenas um pedaço do bolinho de 64 anos. O que seria o glacê perto da renovação carismática.

Seu rosto ruboriza diante de uma segunda espiada na capa do livro ao lado. Ele torce a boca, relaxa os ombros, coça a barba como anúncio ao solilóquio mudo. Aurora de costas, misturando tons de amarelo no godê e ele ali atrás, sentado com as mãos abanando. No alto das suas ideias, ele levanta o dedo para a avó e diz, a senhora não sabe nada de Arte, pare com esse hobbie, essa mania, esse desrespeito e me devolva o investimento em você. Seca a testa, enquanto pensa em Adorno. Não é possível: essas vacas braseadas pela felicidade tem o mesmo valor do touro cingido pelo horror. 

A gargalhada denuncia Antônia. Ela ficara parada ali segundos antes, quietinha, para examinar a conduta do irmão e admirar a avó, ao que o irmão redargue:

— Não tá vendo a vó tentando pintar? 

— Você não mudou nada, Didi.”
— Nem você. Espalhafatosa e performática, atrapalhou o serviço.

— Dramático demais, eu só ri de você gesticulando sozinho. 

Sem desviar o olhar da tela, apenas contornando de branco alvejado o desvio da pincelada, ela deixa a bochecha inerte a uma Antônia já próxima. O beijo da neta não retira os olhos da avó do quadro.

Antônia agarra Didi a despeito de seus resmungos. Ela sente o cheiro de mofo com Hugo Boss e, beijando o rosto fraterno, mal roçando a barba do irmão, relembra o inevitável: envelhecemos nesses anos que passamos longe. 

Ela puxa uma banqueta de fórmica branca e se senta ali ao lado de Adriano, pegada no seu braço.

Antônia olha para a pintura da avó e recorta uma imagem da amiga pintora de galeria, muito muito boa, muito muito sacada. E mexendo muito a cabeça, estendendo sua tela do celular à tela da avó aponta o carrossel de imagens vagas e afirma lá de longe ao lado irmão: vovó, isso tá muito muito bom, tá muito muito moderno também, muito muito atual.

Aurora vira a cabeça, levanta os olhos em direção a Antônia, deixando o olho absorver a neta, pisca e os retém fechados por dois segundos. Antes de retornar à outra tela, Antônia a interrompe:

— Por que você pinta quadros, vovó?

— Como tá sua faculdade?

— Por que você pinta quadros?

— Como anda a Patrícia?

E retorna. Antônia cruza os braços e cerra os lábios. Cadê minha vitamina de pêra e alpiste? Cadê meu dinheirinho?

Adriano levanta as mãos em trégua para abafar a fúria da irmã. E ela continua ali ao lado, remexendo a bunda na cadeira de fórmica, refazendo de cócoras o quadro da avó. Essa pose meio yoga, quase yuppie, segundo seu instrutor desobstrui e oxigena as têmporas e, logo, mal batendo um vento, vem a lembrança fatiada daquela série, qual era a série, uma velha pintava uns quadros, poderia ser um homem pintando uma parede sobre outra parede, quem era, não importa. A partir da conexão entre telas, aquele quadro esquecido, vindo de uma tela ignominiosa, está feito: é arte.

Assim de cócoras, Antônia pensa em como a vovó participa desse mundo moderno, uma obra dessas é uma releitura, ou melhor um agravamento de vários temas: o sagrado feminino das flores, a eternidade da natureza e agora também – por que não – um documentário?

“Vovó o que você acha de fazermos um filme, deixo a câmera parada aqui no fundo, só pegando você pintando esse quadro. Uma amiga minha pode captar o som, o Didi edita, né, Didi? Acho que tem potencial pra gente apresentar isso em alguns lugares.”

Adriano tampa os olhos e ouve o farfalhar do Enigma de Kasper Hauser. Ele força os tímpanos para evitar tanto a avó quanto a irmã. A irmã, ele não ouve pelo bem de seu Walter Benjamin, a avó, porque talvez se avizinhe aquele mesmo tipo de xingo, bom e velho, aos enxerimentos dos dois.

Aurora abaixa os óculos, enxuga na barra da saia uma lente, depois outra lente, as cordas de metal dourado. Recoloca os óculos. Vira a cabeça longa e demoradamente, esticando o gesto ao ponto de Antônia se impacientar ainda mais.

“Vamo vovó, você vai ou não? É uma oportunidade única pra senhora nessa altura do campeonato. Acho que ia ficar muito muito legal mesmo.”

Ao terminar de ouvir essas palavras de Antônia, a avó, prostrada ali no meio da sala meneia a cabeça, fixa os olhos nos dois e retorna ao trabalho. 

E a velha continua, a despeito de toda a sensibilidade canhestra.


Da redação: este é o quarto de uma série de 16 textos do autor Gabriel Cruz Lima. Durante as próximas semanas, a Aboio publicará os capítulos seguintes, na melhor tradição do folhetim, toda sexta-feira, às 19h.

As ilustrações são de Geórgia Ayrosa.

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